segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Mais algumas crônicas...


Mais algumas crônicas...



(...)



Senhor presidente

Diego Gianni





Todos os presidentes que o Brasil já teve se reuniram em um célebre jantar. Depois de alguns drinques, entraram numa disputa de egos para ver qual deles havia sido o melhor líder máximo da nação brasileira. 

- Calem a boca! – urrou Castelo Branco. – Ou mando tudo mundo pra cadeia!

Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel sorriram como manifestação de apoio. Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto bradaram com indignação:

- Respeite os mais velhos!
- Toda esta discussão é uma tremenda bobagem! – disse aquele sentado a esquerda de Peixoto. – Eu fui o presidente mais prudente que o Brasil já teve!
- E quem é você?! – questionou Médici.
- Prudente de Morais!

Ninguém riu da piada, ou talvez nem fosse piada. Mais forçado ainda foi quando Júlio Prestes levantou e disse:

- Não há nada que Prestes neste país.

Pouco depois, com alguns dos presidenciáveis a beira do coma alcoólico e os ânimos exacerbados, Epitáfio Pessoa gritou:

- Café!
- Aceito. – disse Nilo Peçanha com um sorriso bonachão.
- Não, idiota! – retrucou Epitáfio. – Estou chamando o Café Filho ali no canto da mesa, que não abriu a boca até agora.
- É porque estou entretido conversando com meu colega. – disse e virou-se para ele, ignorando os demais. - Como eu ia dizendo, eu prefiro selos. E você, Jânio?
- Quadros.

Rodrigo Alvez e Tancredo Neves ficaram isolados na mesa das crianças, já que não tomaram posse. Tancredo indignou-se:

- Eu não tenho culpa de ter morrido!
- Não. – riu José Sarney, piscando o olho para Tancredo. – A culpa foi da virticulite.

Um helicóptero passou sobre o telhado da mansão onde os presidentes estavam. Itamar Franco largou seu pão de queijo, colocou a cabeça para fora da janela e avisou seus colegas:

- Ulisses Guimarães está brincando de helicóptero de novo!
- Pois manda ele vazar daqui que presidente ele nunca foi! – sentenciou João Figueiredo. – E vê se abaixa este topete, Itamar!

Tocou a campainha. Nereu Ramos olhou pelo olho mágico e disse para os demais:

- É a junta militar.
- Deixa eles entrarem. – sorriu Castelo Branco. 
- Assim não dá! – choramingou FHC. – Assim não é possível!
- Calma, Cardoso. – abrandou Hermes da Fonseca. – A gente não abre a porte e pronto!
- Não é isso. Estou chorando porque o Lula é mais popular que eu.
- Companheiro FHC! – disse Lula cuspindo um bocado de farofa retida em sua boca. –
O companheiro Prudente tinha toda a razão, é bobagem discutirmos. “Eu sou o cara” e não se fala mais nisso.
- Pois pra mim está faltando um dedo nesta história. – murmurou Delfim Moreira para João Goulart, que ainda complementou: “um ex-sindicalista! Onde é que nós estamos?!”.

 Jânio Quadros, bêbado como um gambá de esquerda, catou uma vassoura e passou pela sala de jantar cantando:

- Vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo...

Venceslau Brás torceu o bigode e Afonso ficou com pena. Washington Luís deu um soco na mesa:

- Esta discussão vai levar cinquenta anos! 

- Pois que leve apenas cinco! – fanfarronou Juscelino, majestosamente.

A campainha tocou novamente. José Linhares foi fuçar e comunicou aos presentes:

- Tem uma mulher lá fora com faixa de presidenta.
- Uma mulher presidenta?! – enfureceu-se Gaspar Dutra. – Só no dia em que eu estiver morto!
- Não vão me deixar entrar?! – berrou a mulher lá de fora.
Lula tentou abrir a porta, mas todos os outros o impediram. FHC deu uma chave de braço nele.
Linhares, ainda olhando pelo olho mágico, disse com alívio:
- Calma, meu povo. Ela está indo embora. Só que é com o carro do Juscelino.
- O quê?! – empalideceu ele – Nenhuma mulher pode dirigir minha Brasília!

JK saiu como um doido atrás dela. Collor, intuindo que não mais chegaria sua vez de falar, ficou vermelho feito um pimentão e cuspiu para todos os lados:

- Isto é uma pantomina! É uma patuscada!
- Ora, cale a sua boca! – ouviu-se de um cara pintada que apareceu do nada.

Aproveitando que a porta estava aberta, a junta militar entrou, tomou posse da casa e colocou fim na discussão. Todos os presidentes foram colocados em um camburão.
Bom, todos menos um. E o povo quis saber:

- Cadê o Getulinho?

Todos os presidentes se olharam. Campos Sales gaguejou:

- E-ele foi para o gabinete. Vi uma arma no bolso esquerdo dele.

O resto é história.

(...)

Gangorra
  

     -        Te juro que sim.
-         Hã?
-         Sim.
-         Como assim?
-         Sim, ué. Você me perguntou, eu respondi. Sim.
-         Aceita namorar comigo?
-         Sim.
-         Eu não entendo...
-         O que tem pra entender, criatura?
-         Até hoje eu só levei fora...
-         Vai ver eram as pessoas erradas.
-         Ou eu estava errado.
-         Que importa? Eu aceito.
-         Estou chocado!
-         Está arrependido?
-         Claro que não!
-         Então...
-         É que eu não sei o que fazer.
-         Como assim?
-         O que eu faço com você?
-         Você namora comigo.
-         E como funciona?
-         Nunca namorou antes?
-         Não, já disse.
-         Aviso desde já que morro de ciúmes.
-         Ciúmes do quê?
-         Das outras mulheres.
-         Mas das outras eu só levo fora.
-         Você podia pelo menos sorrir.
-         Estou um pouco tenso.
-         Relaxa...
-         Não sei lidar com o imprevisível.
-         Relaxa...
-         Acordei hoje pensando: vou me declarar pra Tati.  
-         Sei.
-         Assim seria o meu dia: eu me declaro, levo um fora e saio pra tomar um porre. 
-         Seria triste.
-         Seria como sempre foi. E agora você me diz sim.
-         Exato.
-         E eu não sei o que fazer!
-         Me leva pra jantar.
-         Ta cheio de parente lá em casa me esperando...
-         Mas você também, hein? Mulher gosta de cara confiante, sabia?
-         Então por que você gosta de mim?
-         Eu não gosto de você.
-         Não? 
-         Sou apaixonada por você.
-         Como se apaixonou por mim? 
-         Já namorei um tipo igual a você, eu curto uma repetição.Além do mais, você sempre me fez rir.
-         O Gordo e o Magro me fazem rir e eu não estou apaixonado por eles. 
-         Você é muito confuso.
-         Me acostumei tanto a levar fora que me condicionei a isso.
-         Achava apenas que você era um cara tímido...mas estou vendo que você tem problemas.
-         Não, não é pra tanto. Você tem razão, é só insegurança...
-         É uma pena.
-         Vamos jantar?
-         Eu perdi...
-         A fome?
-         A vontade. A gente se vê por aí...
-         Não, espere! O que você vai fazer amanhã?
-         To no começo de gripe...
-         Eu ligo pra você!
-         Acho melhor não...
-         Espera Tati! Você já disse sim, não pode voltar atrás na decisão!
-         Não, não se pode voltar no tempo. O resto pode.  
-         Eu te amo!
-         Não faça isso.
-         O quê?
-         Papel de bobo.
-         Sou um bobo apaixonado!
-         Fez de novo...
-         Volta comigo, Tati!
-         Mas ainda nem namoramos!
-         “Ainda”?
-         Tire este sorriso do rosto. Não dá mais.
-         Por que não?
-         Eu fui precipitada na resposta
-         E eu fui precipitado na pergunta! Somos perfeitos um pro outro!
-         Quer levantar? Um homem de joelhos, no meio da rua...
-         Quer namorar comigo?
-         Você já perguntou isso.
-         Você disse que curte uma repetição.
-         Você ouviu o que eu disse?
-         Por que não ouviria?
-         A maioria dos caras não ouve.
-         Bem, eu não sou a maioria.
-         É, você é diferente. Quer mesmo ter um relacionamento sério?
-         Mais sério que encontro de papas.
-         Mas papa só tem um.
-         Pra você ver como a coisa é séria.
-         Pois eu vou voltar atrás.
-         No quê?
-         Na decisão.   
-         Então quer dizer...
-         Sim.
-         Sim de novo?
-         Sim.
-         Que coisa.
-         E você ainda não está sorrindo.
-         Me veio o pânico de novo.
-         Mas você precisa trabalhar isso em você!
-         Por que está nervosa?
-         Ainda nem nos beijamos e já tivemos nossa primeira briga!
-         É verdade...
-         Aliás, por que ainda não nos beijamos?
-         Não sou um destes caras.
-         “Caras”?
-         Caras que já chegam agarrando.
-         Mas eu sou a sua namorada!
-         Até um minuto atrás não era.
-         Bem, então me beije agora.
-         Aqui?
-         Qual o problema?
-         Eu estava pensando num lugar mais romântico.  
-         Aonde?
-         Algum parque, algo assim.
-         A esta hora é perigoso.
-         Amanhã de manhã, então?
-         Combinado. Você me pega?
-         Eu não tenho carro.
-         Ah...
-         O que foi isso?
-         Isso o quê?
-         A cara de decepção que você fez.
-         Fiz cara nenhuma.
-         Eu vi!
-         Pois troque os óculos.
-         Aposto que seu último namorado tinha carro.
-         Tinha sim. E daí?
-         E daí que você não me quer.
-         Chega! Você é muito inseguro!
-         Um inseguro sem carro.
-         O carro não tem nada a ver.
-         Aposto que seu ex-namorado...
-         Meu ex-namorado era um homem muito seguro.
-         E o carro dele, também tinha seguro?
-         Você ta me ofendendo...
-         Desculpa, Tati...
-         Estou indo...
-         Não, fica! Eu te beijo agora!
-         Me larga.
-         O que foi?
-         Você parece um destes caras.
-         “Caras”?
-         Caras que já chegam agarrando.
-         Mas você é minha namorada!
-         Não sou mais.
-         Quando foi que terminamos?
-         Quando foi que começamos?
-         Quer saber? Precisamos de um tempo!
-         Também acho.
-         Depois quem sabe nós voltamos.
-         No tempo?
-         Não, nós dois?
-         Entendo.
-         Já estou com saudades.
-         É possível sentir saudades de algo que ainda não se viveu?
-         Te juro que sim.

Diego Gianni

 
(...)


Nota do autor - Para ouvir durante a leitura desta próxima crônica:
http://www.youtube.com/watch?v=Qoi25XRDeeo

Avesso
Diego Gianni

Na noite gelada, mamãe monstro despertou com os berros do bebê monstro. Rastejou-se ela pelo assoalho rumo escadaria abaixo, colou o corpo gosmento no do filho e perguntou cheia de comiseração:

- Que você tem, monstrinho?
- Tem uma criança encima da minha camaaaaa! – choramingou o bebê monstro.
- Ah, bebê. Já não conversamos sobre isso?
- Sim, mamãe.
- Ontem a noite mesmo. O que foi que a mamãe te disse?
- Que crianças não existem.
- Isso mesmo, bebê. São apenas histórias que contamos para os monstrinhos.
- Mas eu tenho medo, mamãe, eu vivo de medo!
- Mas monstrinho, horror da minha morte...medo de quê?
- Das crianças!
- Crianças não existem, bebê. Você já está bem crescidinho.
- Eu ouvi uma criança encima da minha cama! Eu juro! O estrado ficou tremendo! A criança estava pulando, mamãe! Juro pelo diabo!
- Bebê, não diga o nome do diabo em vão.
- Desculpa, mamãe.
- Olha só. A mamãe vai olhar se a criança está encima da sua cama. Você quer isso?

Envergonhado, o monstrinho fez que sim com a cabeçorra. Mamãe monstro olhou e é claro que nada tinha ali, porque crianças de fato não existem.

- Está vendo, bebê? Foi só sua imaginação.
- Snif...snif...(choramingos) Mamãe, me faz um leite coalhado e azedo? Estou sem azia.
- Ai, ai. Já está tarde, meu demoniozinho.
- E será que você...snif...snif...me traz um biscoito?
- Filhote, também já falamos sobre isso. Você ainda não está na idade de comer biscoitos.
- Eu já sou crescidinho...
- Mas ainda não tem nenhum dente na boca.
- E quando meus dentinhos vão nascer?
- Tenha um pouco de paciência, bebê. Lembra o qut a mamãe contou sobre a fada dos dentes?
- Sim, sim! No dia em que eu matar minha primeira fada dos dentes, coloco a cabeça dela debaixo do travesseiro e no dia seguinte nasce um dentinho na minha boca.
- Isso mesmo, monstrinho feio da mamãe. Com o tempo você vai arrancar a cabeça de trinta e seis fadas do dente.
- Não vejo a hora, mamãe.
- E por falar em hora, já passou da hora de dormir. Você vai ficar mauzinho?
- Sim, mamãe.
- Então tudo bem. (lambe a testa do filho) Tenha amargos pesadelos, bebê. Mamãe te odeia.
- Eu também, mamãe.

A mãe afaga os chifres do filho, morde carinhosamente um pedaço da bochecha dele, cospe para o lado e deixa o quarto. Bebê monstro custa a pegar no sono, seus olhos abertos e vigilantes estão focados no estrado da cama.
Lá fora, de forma horripilantemente açucarada, o vento assovia Can't Smile Without You, de Barry Manilow. O monstro cobre os olhos com o lençol. Treme de medo e pragueja para que amanheça logo. Mas a noite não facilita.
A noite é uma criança.

(...)

Tem um monstro
          em cima da
                minha cama!
Diego Gianni

Uma definição para o emprego do Marcelo?
Divertido.
Tinha seus momentos.
Quando a vida é meio besta de tanto comum, a gente arruma jeito de se divertir com o banal.
E olha que nem sempre é fácil. Trabalhar numa loja de informática é um pé no saco. Ser técnico de computadores são dois pés no saco. Mas Marcelo arrumava jeitos de achar graça.
A maioria das pessoas que levavam seus computadores para a assistência cometia o erro de não apagar seus arquivos pessoais. E Marcelo ria das bizarrices que encontrava.
Quase sempre, ele ria. E tinha que se fazer de sério na hora que tal rapaz ia buscar o computador de volta.
É, quase sempre era engraçado.
Numa sexta feira, nem lembro a data, entrou um cliente na loja acompanhado da filha. Tenho que descrevê-los, mesmo que brevemente, e rogo para que o leitor não se canse.
Não desista, leitor.
Vamos ver até onde esta história vai.
O nome do cliente era Anônimo, João Anônimo ou coisa assim. Parecia ter quarenta e tantos anos. Emanava simpatia e, como mencionado, estava acompanhado da filha. Uma criança de três ou quatro primaveras.

- Bom dia. – cumprimentou o Anônimo.
- Bom dia, senhor. – retribuiu Marcelo.
- Meu computador não está ligando. Nem entra na tela inicial.
- Pode ser vírus.
- Vocês podem fazer o orçamento?
- Claro. Deixa eu anotar seu telefone...

E enquanto Marcelo fazia a ficha do cliente, olhou com atenção para aquela criança adorável.

- Sua filha? – perguntou por perguntar.
- Minha princesa. – sorriu o Anônimo, apertando a bochecha direita de Beatriz.

Marcelo ia comentar que estava recém casado e sonhava em ter uma filha. Imaginava que as meninas davam mais trabalho para criar, mas mesmo assim...Marcelo sempre quis ter uma filha. Seria o pai mais ciumento do mundo, disso ele sabia.
Mas não comentou nada, isso era coisa só sua. Entregou a ficha para o cliente.

- Ligamos hoje a tarde pra passar o orçamento.
- Obrigado. – respondeu o Anônimo com seu sorriso de praxe. – E vê se dão um jeito neste bicho aí!
- Pode deixar. – riu Marcelo.

O pai pegou a filha no colo e deixou o lugar. Marcelo admirou, bobo que era.

Por que, por que, por que a história não pode acabar aqui?
Não basta escrever um texto narrando uma simples cena do cotidiano? Um técnico de informática que arranja jeito de gostar da vida, apaixonado pela esposa, e como antagonista um cliente simpático que ama demais sua pequena filha, não há beleza suficiente nisso?
Não se engane, leitor. A culpa também é sua.
Você deseja uma trama, então vamos em frente.

Lá por duas da tarde, Marcelo se empenhou em arrumar o “bicho” do cliente Anônimo. Era coisa simples, coisa fácil, coisa de cinco minutos e Marcelo já estava usando o computador como se fosse seu.
O problema é que Marcelo estava com tédio. Além do normal. Por mais que o dono desse computador fosse pra lá de simpático, Marcelo ia fuçar nos arquivos pessoais dele pra fazer hora.
Achou uma pasta com vídeos engraçados, dos quais se entreteu com alguns. Outra pasta tinha fotos da família, coisa que Marcelo não gostava de fuçar por respeito ao cliente. E como sempre, havia uma pasta com fotos “calientes”.
E foi aí que a sexta feira do Marcelo acabou.
A graça acabou. Sua inocente percepção de vida findou. Dentro daquela pasta.

...

Quando Anônimo foi buscar o computador, Marcelo não estava mais aberto a tanta simpatia.

- Doutor dos computadores! – brincou o Anônimo. – Deu jeito na minha criança?

Marcelo teve um conflito mental. Não sabia se deveria responder secamente, fingir simpatia ou partir a cabeça do cliente ao meio.

- Teve jeito sim. – disse Marcelo, optando por uma resposta morna.
- Ah, maravilha! Lá em casa ninguém vive sem este computador!

Marcelo olhou para fora da loja. O carro do Anônimo estava estacionado bem em frente. Dentro do carro, Beatriz estava com o rosto colado na janela. Segurava uma boneca ou um bicho de pelúcia, Marcelo não conseguiu ver direito. Não era nisso que estava pensando.
Não queria pensar.

- Quanto ficou? – perguntou Anônimo, tirando a carteira do bolso.
- Trinta reais. – respondeu Marcelo sem tirar os olhos da criança lá no carro.
- “Trintão”? Opa! Tá na mão, mestre! Já gastei uma grana agora no centro comprando um vestidinho novo pra minha princesinha. – comentou o Anônimo.

Marcelo olhou bem para ele. Sem sorrir. Se era um covarde, no mínimo sentiu que nunca mais conseguiria se olhar no espelho se pelo menos não fosse cínico.

- Você deve amar muito sua filha, não? – perguntou Marcelo.

O Anônimo ficou pálido, ou talvez tenha sido a luz. Talvez. De repente, já não era tão simpático. Fez aquela cara de quem tenta se lembrar de algo. Rastros.
Será?

- Amo sim. – respondeu.

Dito isso, deixou o dinheiro sobre o balcão, pegou o gabinete do computador, virou as costas e foi andando em direção ao carro.
Marcelo olhou pela provável última vez para a criança de rosto colado na janela do carro.
Acenou para ela.
A criança retribuiu o aceno. Sem sorrir.
Sem sorrir.
Anônimo deu a partida no carro e saiu cantando pneu.

(...)

No meu tempo...
Diego Gianni

Meu avô navega pela internet. Não chega a ser o melhor dos surfistas, mas
justiça seja feita, se sai muito bem. Hoje, devo dizer. No começo aquela
“maquinaria” deixava o velho italiano um tanto irritado.
-        Esta porcaria não funciona!
-        Qual é o problema, vô?
-        A tela fica toda preta!
-        Tem que ligar o monitor na tomada, vô.
Quem também já teve o privilégio de ensinar o vô ou a vó nos primeiros
passos desta grande tecnologia, sabe que é preciso muita paciência – por
nós e por eles. O que é totalmente compreensível. Meu avô, por exemplo,
nasceu em 1.937. Deve dar um verdadeiro nó na cabeça de repente se ver a
frente de algo que lhe permite se comunicar com o mundo inteiro e traz uma
nova linguagem para dentro da sua casa. “Sites, pixels, gigas, e-mails,
scraps”, dá pra imaginar o quanto isso assusta uma pessoa que nasceu no
tempo em que Hitler ainda achava que podia dominar o mundo. Aliás, se
Hitler tivesse tido acesso à internet, a coisa teria ficado preta pra todo
mundo.
Mas voltemos ao meu avô, o velho Gianni.
-        Esta porcaria não funciona!
-        O que foi agora, vô?
-        Esta porcaria do Word não abre!
Meu vô adora a palavra “porcaria”.
-        É só clicar, vô...
-        Eu já cliquei! Eu já cliquei!
-        Calma, vô...olha o coração.
-        Meu coração funciona melhor que esta porcaria!
-        Tem que clicar duas vezes pra abrir.
-        E por que não me falou de uma vez?
-        Eu falei, vô. Faz vinte minutos.
-        Está me chamando de senil, rapazinho?
Ter avô é bom, mas dá um trabalho...
Mas me permito também me imaginar na minha terceira idade. Ano 2.047. Eu,
lá na casa dos sessenta, ouvindo meu neto pacientemente me explicar como se
usa o tele transporte.
-        Eu não consigo usar esta porcaria!
-        Você esqueceu de transcodificar, vô.
-        Eu já fiz isso!
-        Mas esqueceu de recarregar a válvula matriz.
-        Você não me falou isso!
-        Te falei há meia hora atrás.
-        Eu vou desistir desta porcaria! Era muito mais fácil no tempo em que a
gente viajava de avião! Sim senhor! Com todas aquelas filas e incertezas,
era muito mais fácil!
-        Mas o tele transporte é muito mais prático, vô.
-        Uma bela duma porcaria!
Meu neto respira fundo e me explica tudo de novo, desde o começo.
-        Primeiro você encaixa o propulsor na fibra ótica. Depois que os íons já
estiverem reiniciados, é só ativar o indutor, inverter a bobina e deixar o
laser de transição no nível amarelo. Amarelo, ouviu vem? Não esqueça disso,
vô.
Mas a esta altura, com certeza, já estarei cochilando.

(...)

 

Estrelas amarelas
Diego Gianni 


Foi como um sonho estranho...vocês tinham que ter visto!
Todo mundo estava lá, caminhando. Até mesmo aquela senhora chata da loja de sapatos da esquina. Até ela andava com a gente.
Eu não entendia aquelas caras feias. Juro que não entendia. Nós éramos tantos, o que podia dar errado?
E as estrelas! É o que mais me lembro desses dias! Todos nós carregávamos estrelas nos braços, estrelas amarelas. Papai me dizia que aquele era o meu amuleto da sorte. E parecia mesmo ser um dia de muita sorte.
Eu estava cansada de tanto andar e papai me pegou no colo. Ficou olhando para os lados, com medo. É, dava pra ver que ele estava com muito medo, mas eu não sabia bem do quê. Na hora eu pensei que era porque eu tinha que ser uma menina corajosa. Tinha outras crianças lá, acho que tão curiosas quanto eu. Eu tinha muitas perguntas, mas papai me mandava ficar em silêncio.
Mas então por que aqueles homens não paravam de berrar? Eles, os homens sem estrelas. No lugar das estrelas, havia aranhas.
Aranhas negras.
Eu jamais trocaria uma estrela por uma aranha. Quem faria uma tolice dessas?
Não tive muito tempo pra pensar. Chegamos nos trens e eu dei um riso de alegria, porque nunca tinha andado num trem antes.
Papai me apertou no peito, como se alguém fosse me roubar. E me roubaram mesmo, apesar de parecer mentira. Fui colocada no mesmo vagão que mamãe. Isso me aborreceu, pois com todo o respeito, mamãe sempre foi uma resmungona das mais chatas.
O trem era mágico, só podia ser. Não tinha como caber todas aquels estrelas num espaço tão pequeno.Mas coube! Juro que coube!
E depois de muito tempo, nem sei quanto, nós chegamos num lugar cheio daqueles homens que carregavam aranhas nos ombros.
Eu vi papai saindo do vagão e corri até ele, mas um homem me empurrou no chão e gritou comigo. Eu chorei e ele gritou mais ainda, mandou que eu fosse tomar um banho junto com os outros.
Eu achava que depois disso, ele ia me deixar ver papai.
Fui para o chuveiro com outras crianças e muita gente velha. Foi estranho quando trancaram a porta.
Não havia água! Acredita nisso?
Lembro que sumi no meio da fumaça e fui subindo cada vez mais, voando sem direção. Olhei para baixo e vi papai trabalhando. Quanto orgulho eu tinha dele!
Vim parar no meio das nuvens, eu e um montão de outras estrelas amarelas. Ainda não sei como, mas aqui estou eu. Continuamos caminhando, mas acho que agora para um lugar melhor. Deve ser. Não vi mais o medo nos olhos de ninguém.
"Minha estrela".
Era assim que papai me chamava.
A vida é mesmo muito engraçada.









...


Quer ler mais das minhas crônicas?
Há centenas delas na minha coluna, é só clicar aqui!

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